Complexo de Israel surgiu em 2020, com domínio de cinco comunidades na zona norte do Rio
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| Avanço do 'narcopentecostalismo' é reflexo do crescimento de religiões neopentecostais no país, apontam pesquisadores |
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Aliança com facções locais e 'guerra' contra o CV Ainda segundo Gutiérrez, a entrada do TCP no Ceará se deu por meio da aliança com uma facção local, um expediente também bastante utilizado por CV e PCC em seus respectivos processos de nacionalização."Esse é o movimento padrão de expansão das facções criminosas, que é de incorporação dos grupos locais", diz Carolina Grillo, coordenadora do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni/UFF).
"Pequenas facções locais acabam se beneficiando de se aliar a essas grandes facções porque elas entram em redes de solidariedade, de contato para compra de drogas, de armas, de suporte em situações de rivalidade."No caso cearense, o grupo é o Guardiões do Estado (GDE), facção que ficou conhecida pelos assassinatos violentos de rivais e que, em disputa por territórios com o CV em 2017, transformou a região metropolitana de Fortaleza na área com maior taxa de homicídios do país, de 86,7 para cada 100 mil habitantes. Em janeiro de 2018, membros do GDE invadiram uma festa e mataram 14 pessoas, a maior chacina do Estado. Depois disso, em meio a intensa repressão de autoridades locais, com a prisão de vários líderes, o grupo entrou em derrocada. Foi nesse contexto de enfraquecimento que membros da facção passaram a aderir ao TCP. Essa aproximação, segundo as investigações, se deu a partir da migração de lideranças do GDE do Ceará para o Rio de Janeiro, onde tiveram contato com líderes do TCP e passaram a costurar a aliança.
"A gente tem informações de inteligência que precisa manter sob sigilo, mas essas lideranças têm papel fundamental. São as pessoas que orientam e que determinam como aquele grupo criminoso vai atuar, as cooperações e as novas formas de financiamento", afirma Márcio Gutiérrez.Desde setembro, a Polícia Civil vem monitorando "as consequências e desdobramentos dessa aliança". "Temos feito diversas capturas e compreendido o método [de atuação da facção]", completa o delegado-geral. Grafite em Parada de Lucas do personagem Peixonauta: segundo trabalho da pesquisadora Christina Vital, uma referência humorada a PeixãoCrédito,Reprodução/Christina Vital da Cunha Legenda da foto,Grafite em Parada de Lucas do personagem Peixonauta: segundo trabalho da pesquisadora Christina Vital, uma referência humorada a Peixão Próxima da milícia e aliada do PCC Nesse sentido, Kristina Hinz, pesquisadora associada ao programa de pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), identifica três características fundamentais do TCP, para além do caráter religioso.
- A relação menos conflituosa com a polícia, o que tem evitado confrontos nas regiões dominadas pela facção no Rio de Janeiro;
- A formação de uma aliança com o PCC, que "proporcionou um acesso a uma rede maior de crime organizado, e, principalmente, acesso aos seus mercados internacionais";
- E a aproximação de grupos milicianos.
"Eu acho que sempre há risco", diz Luiz Fábio Silva Paiva, coordenador do Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do Ceará (LEV/UFC).
"Vai depender muito da movimentação entre os grupos e do próprio Estado. Na medida em que esses grupos se acomodam e veem a possibilidade de uma trégua, você vai ter menos conflitos. Já aconteceram momentos assim antes, de dizer que 'tá tudo apaziguado'", avalia o pesquisador.
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| Na Parada de Lucas, no Rio, é comum encontrar a grafites com a bandeira de Israel |
Fechamentos de escolas e 'vilarejo-fantasma' Não é, contudo, o que se observa no momento no Ceará. Em agosto, a escalada de violência na disputa entre facções na capital, com episódios de intensas trocas de tiros, chegou a provocar o fechamento temporário de algumas escolas. No mês seguinte, um vilarejo no município de Morada Nova virou uma "cidade-fantasma" depois que moradores foram forçados a deixar suas casas em meio a um conflito entre grupos rivais. A violência do crime organizado colocou o Estado no debate nacional sobre segurança pública, tema apontado como principal preocupação pelos eleitores e um dos grandes assuntos que devem mobilizar as eleições de 2026. Paiva estuda há mais de dez anos a formação e presença de facções no Ceará e elenca uma série de fatores para explicar porque o Estado segue no topo do ranking de municípios com as maiores taxas de homicídio do país. O Ceará, ele diz, tem uma localização estratégica, um atrativo para grupos criminais. "É fácil sair daqui para praticamente todas as cidades do Nordeste. Você tem uma conexão tanto com o Norte quanto com o Sul." Ele aponta também uma combinação explosiva entre demanda e oferta, com a expansão do consumo de drogas no Estado, tanto na capital quanto no interior, e a presença de "agentes criminais motivados", com "disposição para fazer trânsito de drogas", que hoje circulam por portos e aeroportos, inclusive clandestinos.
"Não é à toa que os números de homicídios, de conflito armado o tempo todo, são muito significativos", completa Paiva.Essa presença massiva de mão de obra para o crime, em sua avaliação, é uma decorrência "do próprio desenvolvimento do Estado", que foi muito desigual. O Ceará passou por um processo de expressivo crescimento econômico na última década, mas com manutenção de altos índices de pobreza e desigualdade. 'Todos preferem o silêncio porque têm medo de perder a vida' Moradores de áreas controladas pelo CV em Fortaleza que conversaram sob condição de anonimato com a reportagem também temem que a chegada de uma facção rival intensifique a escalada de violência. Na prática, contudo, é uma mudança com muito sabor de "mais do mesmo". Há anos, residentes de áreas conflagradas vivem sob uma série de limitações por conta das disputas entre grupos criminosos. Muitos estão acostumados a ouvir "chuvas de balas" à noite, evitam sair de casa e frequentar bairros dominados por facções rivais. A dinâmica de conflito permanente chega a separar famílias dentro da mesma cidade. Uma das pessoas ouvidas pela BBC News Brasil comentou, em tom de lamento, que, apesar de viver a poucos quilômetros da irmã, não a encontra mais e, por isso, ainda não teve chance de conhecer a sobrinha que nasceu há poucos anos.
"Hoje os adolescentes se trancam em casa. Têm medo de falar qualquer coisa sobre o assunto", diz Reginaldo Silva, gerente de advocacy (promoção) e participação juvenil da ONG cristã Visão Mundial, que atua em defesa dos direitos da criança e do adolescente.Foi essa organização que tentou alertar as autoridades cearenses que estudantes que acabaram sendo assassinados em Sobral em setembro vinham sendo ameaçados por frequentarem uma escola em área controlada por uma facção diferente daquela que dominava a região em que viviam.
"Eu já recebi ligação de adolescente dizendo: 'Olha, eu estou aqui embaixo da minha cama porque está acontecendo tiroteio e eu estou com medo'. Hoje não tem mais esse relato que chega abertamente", afirma Silva. "Todos preferem o silêncio porque têm medo de perder a vida."A organização, que atua na capital e em outras cidades no Ceará, identificou um aumento da violência em algumas das regiões onde houve entrada do TCP, assim como episódios de intolerância religiosa em Maracanaú e na vizinha Pacatuba. Traficantes evangélicos? A presença de traficantes que se dizem evangélicos não é exclusividade do TCP, ainda que o grupo tenha particularidades que vêm chamando a atenção de pesquisadores dentro do contexto do que alguns têm denominado de "narcopentecostalismo". Especialistas apontam que a influência de religiões sobre as dinâmicas de poder do tráfico sempre existiu e não é algo particular ao protestantismo. Esse fenômeno, agora ligado à fé evangélica, é um reflexo do próprio avanço dessa religião entre os brasileiros. A adesão de membros de grupos criminosos a elas está dentro desse processo de expansão. Em um artigo sobre a criação do Complexo de Israel, a coordenadora do Laboratório de Estudos em Política, Arte e Religião (LePar) da UFF, Christina Vital da Cunha, aponta que, nas décadas de 1980 e 1990, não era raro encontrar traficantes no Rio de Janeiro que se identificavam com religiões de matriz africana, dinâmica que foi se transformando no ritmo do crescimento do neopentecostalismo. Em seu trabalho de campo, a pesquisadora acompanhou essa mudança nos murais e grafites que coloriam as comunidades cariocas. Com o passar dos anos, símbolos que faziam referência à umbanda e ao candomblé foram sendo substituídos por mensagens e imagens cristãs ligadas às crenças neopentecostais. Esse fenômeno ganhou complexidade mais recentemente, quando a religião foi além das escolhas individuais de traficantes e passou a influenciar a identidade de grupos criminosos, como é o caso do TCP. Os discursos, símbolos e ritos religiosos foram incorporados na conduta criminal da facção, observa Kristina Hinz, pesquisadora associada ao programa de pós-graduação em Ciências Sociais da Uerj.
"Notavelmente, as facções narcopentecostais se utilizam do discurso religioso para legitimar a expansão dos seus territórios e nos confrontos com outras facções", destaca.
"O combate de inimigos passa a ser compreendido como guerra espiritual. Isto tem ocorrido principalmente em confrontos com o Comando Vermelho, tradicionalmente relacionado a religiões de matriz africana", completa.Como conciliar, entretanto, a contradição entre a prática criminal, com assassinatos, torturas e extorsões, e a postura que se espera de fiéis cristãos? Hinz diz que a violência praticada por grupos ligados ao narcopentecostalismo "é legitimada com discursos do combate bélico e violento em nome da purificação religiosa e do combate das forças diabólicas, do mal". Na comunidade evangélica mais tradicional, a rejeição da ideia de que traficantes possam ser de fato cristãos é muito forte. A lógica é que "ser evangélico" não significa só aderir às crenças da religião, mas ter atos e um estilo de vida de acordo com certos preceitos. Por isso, a ideia de um criminoso evangélico seria, portanto, inaceitável. Paiva aponta que o TCP não pratica uma "teologia profunda", mas destaca a força que essa retórica tem na criação de uma "unidade ideológica".
"É um grupo que conseguiu, dentro da esfera criminal, de fato tornar a religião como elemento motivador das coisas", avalia o sociólogo.Uma combinação que, diante do avanço do protestantismo, pode continuar atraindo adeptos. O último censo realizado entre a população carcerária no Ceará mostrou que 43,2% dos quase 20 mil presos eram evangélicos. Outros 33% eram católicos e os demais seguiam outras crenças.
Fonte: Por BBC News



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